"Quero dividir com aquelas que sabem o que é sentir na pele o nojo, a repulsa, a vergonha de um toque indesejado, impróprio, inoportuno, incômodo, dolorido..."

Posted: | por Felipe Voigt | Marcadores: ,
Querido Ogro;

Não vou fazer um texto cheio de estatísticas sobre a violência sexual, abuso, exploração contra criança e adolescentes. Chamem como quiserem, avaliem os números que muitos veículos irão publicar, se choquem com eles. Hoje é Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes e eu queria apenas pedir a você que publique esse texto para dividi-lo com as crianças e adolescentes que chamam isso de "experiência". Quero dividir com aquelas que sabem o que é sentir na pele o nojo, a repulsa, a vergonha de um toque indesejado, impróprio, inoportuno, incômodo, dolorido e outros adjetivos que só quem passou sabe.

Um fantasma que assombra seu quarto, uma pessoa que você acreditava poder contar, um adulto, que deveria cuidar de você, saber que aquilo não é coerente, não é justo, mas não sabe, ou se sabe, terá outras desculpas pra justificar "o ato". Triste, né? É.

Temo por outras crianças e adolescentes que passarão por histórias mais, tão ou igualmente doloridas a minha. Temo por minha filha. Tenho pavor de uma camada da sociedade que ainda justifica os atos dessa espécie de criminoso. Eu tinha 14 anos. Já ouvi de parentes muito queridos que "a culpa" era minha, "quem mandou usar pijama em casa?!". É, quem mandou? Na minha casa, de pijama... INDECENTE!

Agora, dá uma checada aí na sua consciência, quando você vê uma matéria de uma adolescente que foi abusada sexualmente. Qual sua reação? Avalie, reflita.

O problema maior é que algumas pessoas tem um discursinho pronto, pra justificar algo que não querem ver, acham que "não é problema meu"... mas é, viu?. Esse tipo de homem escroto, que se esconde num comentário "inocente" do tipo "Ahhh, mas as meninas de hoje são muito oferecidas, ficam provocando", está aí do seu lado. E pior: está do lado do seu filho ou filha, pode ser um tio, um professor, um padrasto, um pai, um vizinho.

Ainda bem que a generalização é idiota neste caso, tem muita gente que não pensa assim, que vê que o maior vilão desta história é dar abrigo e desculpas aos abusadores. Justificam-se na atitude esperada de um homem. Claro, se sua enteada estiver de pijama na casa dela, o que é esperado de um homem é que cumpra seu papel, não é? SIM! Que seja homem e não um animal. Que pense com o cérebro e não com o pau. Rima infeliz.

O adulto tem, sim, papel de zelar pela criança, pelo adolescente. Hoje eu protejo minha filha. Tento ser o mais natural possível, o mais tranquila... anos de terapia. Porém é inevitável que qualquer homem que se aproxime dela me deixe ressabiada, e quando digo qualquer, é qualquer mesmo!

Outro dia ela chegou da escola dizendo que um dos professores a beijou no nariz. Me deu um arrepio na alma, uma coisa medonha. Segurei e perguntei se ela havia gostado ou se não foi legal. Ela disse que gosta do professor e que ele fez o mesmo nos outros coleguinhas. Aliviou? Não. Fico observando o trato do professor com ela. Sempre pergunto se foi tudo bem na escola. E, mesmo aos três anos, explico pra ela que existem carinhos que a gente não gosta e não precisa aceitar. Que qualquer carinho que a deixe triste ou com vergonha, que ela deve pedir pra pessoa parar e pode contar pra mamãe tudo, tudo que ela quiser, mesmo que alguém diga a ela que não deve contar.

Isso garante que minha filha não sofrerá o que eu sofri? Não sei... infelizmente, não sei. Só peço uma coisa: mães, escutem seus filhos!

Minha querida,

Obrigado mesmo pelo texto! Hoje mesmo me senti mal por não ter tido tempo de escrever um texto sobre esse problema tão grave e cada vez mais presente. É um dia de alerta, um dia de conscientização e conversa, que deve ser estendido aos demais 364 dias... Não dá mais pra virar o rosto pra essa realidade que hoje temos mais acesso, mas que acontece há tempos.

Antes a alegação para esconder-se do problema era a vergonha social em assumir que se tem uma filha abusada, um filho aliciado... e também assumir que errou ao deixar um monstro entrar em casa e ter acesso aos filhos. Mães que não se importam em preservar seus filhos de estranhos e depois de alguns meses de namoro já deixam qualquer um entrar em suas casas. Não é generalização: é constatação pura e clara!

Sei de casos em que a mãe namorou o cara por três ou quatro meses e já deixava sua filha de 10 anos sob os cuidados dele. E que depois de 5 anos só é que ela foi saber que esse namorado lindo e prestativo era, na realidade, um crápula que abusava de sua filha. E tudo começou justamente nessa época em que ela deixava os dois sozinhos. E o pior: ela ainda desconfiou da filha, achando que a menina havia o seduzido. Medonho demais...

Há ainda os casos em que os pais sequer desconfiam: são tios, cunhados, primos, vizinhos, amigos da família... Homens que socialmente são um exemplo: frequentam a igreja, o bairro todo gosta e aprecia a educação do cidadão, não há uma mancha que macule seu caráter. Pois é: e quando entra em casa, escondido no calor da complacência alheia, assedia meninas pela internet e depois pessoalmente.

Lembro-me de outro caso: o homem, já passado dos 50, era aquele que todos confiavam nos meios em que frequentavam. Ia à igreja três vezes na semana, ajudava nas festas, trabalha como instrutor do escoteiros, cantava bingo na quermesse, todos o tinham como um homem de Deus! Deixavam suas filhas com ele para que ensaiassem a quadrilha para a festa junina de todos os anos, ele buscava e levava de volta na porta da casa, entrava, prestava contas aos pais.

Anos mais tarde esse homem se matou enforcado porque descobriram alguns casos de meninas que foram estupradas por ele. Outras foram "apenas" molestadas. E isso vinha de anos! Amigas das meninas notavam que elas estavam diferentes na época, que se retraíram e não queriam mais ensaiar para a quadrilha. E os pais as obrigavam a ir, afinal, era algo que faziam pelo bem da comunidade, da igreja e por Deus. "Como assim, essa menina não quer mais ensaiar com Fulano? Vai, sim, senhora...!".

Conheço casos e casos assim... e, na maioria esmagadora dos casos, são pessoas íntimas da família. São pessoas que tem acesso ao núcleo familiar e, consequentemente, à criança. Gozam de prestígio entre aqueles que deveriam zelar pela inocência daquela criança. E abusam.

É uma realidade que acontece na sua frente, na vizinha, na rua de trás... Todos conhecem pessoas que sofreram algum abuso quando criança\adolescente. Sim, até você que está me lendo: você tem amigos, parentes, colegas de trabalho que já passaram por algo assim. Mas a maioria toca a vida adiante e não fala no assunto. Mas as sequelas disso permanecem. E duram... como duram. Muito do que você critica no comportamento dessas pessoas pode ser, sem que você e elas saibam, oriundos desse abuso. Seja uma postura mais extrovertida e "desprendida de moral", seja uma postura mais fechada, reclusa em seu mundo de dor e incompreensão. Portanto, pense muito antes de apontar o dedo para o comportamento alheio: às vezes esse comportamento tem raízes sangrentas e sofridas...

E no seu caso, minha cara, não é feio desconfiar das pessoas que se aproximam de sua filha. Todos deveriam desconfiar. Todos devem zelar, antes de qualquer coisa, pelo bem-estar daquela criança´e daquele adolescente. Desconfie. Foda-se! Se a pessoa em questão ficar ofendida, será um problema dela! Antes ele ficar "magoadinho" do que ter sua filha com uma sequela dessa.

Eu mesmo já cansei de evitar ficar em situações em que algumas pessoas pudessem desconfiar de mim com seus filhos: são sobrinhos pequenos, filhas de amigos e vizinhos... evito ficar sozinho com eles fora do alcance visual dos pais ou de algum adulto, deixo sempre claro o que estamos fazendo. Evito até deixá-las sentadas no meu colo... Não porque vou ter alguma excitação com isso: quero apenas deixar fora qualquer vestígio de desconfiança sobre minha atitude com aquela criança em questão. E eu adoro estar entre elas, me dou muito melhor com os pequenos do que com os grandes.

E é muito mais por essas crianças as quais tenho acesso que evito qualquer ocasião que possa gerar uma dúvida. É meu dever como adulto... E mesmo que um pai ou uma mãe desconfie de mim: eles estão no direito deles. Direito e dever! Desde que seja pra preservar seus filhos, não ligo que se incomodem com a minha presença perto deles. Eles podem errar comigo, mas uma hora acertarão com um monstro.

Meu pai tem um bar há 20 anos e há um tempo atrás uma menina de 5 anos foi comprar doce. Ela é filha de uma vizinha que sempre compra refrigerante com ele, o marido frequenta o bar e tal. Ou seja: todos conhecem meu pai, sabem um pouco da índole dele. Mas nesse dia em que a menina foi comprar o doce, na inocência dela, deu uma moeda de 10 centavos para comprar um chocolate de 1 real. Ele deu o chocolate e só depois pegou a moeda e viu que era menos. A menina já tinha saído, toda feliz. O que ele fez? Anotou para cobrar do pai depois... como já aconteceu dezenas de vezes com outros clientes.

Mas 10 minutos depois estava a mãe da menina lá, questionando o motivo que o levou a "dar" um doce para sua filha. A mulher desconfiou na hora! Tipo: "o que esse cara quer dando chocolate assim, de graça, pra menina?". E foi tiras satisfação. Ele explicou a ela o que aconteceu, pediu desculpas e mostrou que foi realmente sem intenção alguma, na inocência. Ela também se desculpou, mas pagou a diferença e saiu. Meu pai ficou puto, se sentiu ofendido... Mas eu entendi a atitude da mãe, expliquei pra ele que a mulher não o conhecia o suficiente e que o que ela fez foi o certo. Depois ele ponderou e deu razão para ela.

Continue zelando por sua filha, sem ter medo de ser injusta com alguém. Está educando-a, mostrando que há carinhos e carinhos, há pessoas boas e ruins, há toques bem-vindos e toques repulsivos. Está respeitando a criança que está sob suas asas, dando a ela todo o terreno possível para se abrir com você caso algum dia algo aconteça a ela.

E para os demais: veja sempre o problema em sua volta. Se informe, veja como seu filho, seu sobrinho, seu vizinho pequeno está se portando... e com quem está se envolvendo, conversando na rua, na praça, na própria casa. Caso veja algo diferente e estranho, fale com uma assistente social, com um policial, use o Disque 100 para tirar dúvidas. Se envolva mesmo. Você tem essa obrigação... se sinta obrigado a manter-se vigilante!

Nesse caso, é melhor pecar pelo excesso do que pela omissão.

1 comentários:

  1. Carol Viana disse...
  2. Pra começar, essa história de "papel de homem" me irrita profundamente. Não tem nada que me tire mais do sério do que essa colocação. O cara tá ali e se tiver uma mulher perto, estufa o peito e pensa:"Deixa eu ir fazer meu papel de homem"... Dar em cima, falar gracinhas, tentar algum tipo de intimidade sexual. É o tipo de justificativa mais sem pé nem cabeça que eu já ouvi na vida, só perde pra justificativa de que a vítima provoca.
    Sua vigilância não é excessiva de forma alguma. Todo mundo deveria agir dessa maneira.
    Tenho um amigo que não coloca em hipótese alguma, nem deixa que os amigos coloquem fotos de suas filhas pequenas na internet. Eu adoro as duas, sempre tirei fotos com elas, amo crianças, mas nunca coloquei nenhuma foto minha com as meninas em rede social nenhuma. Estão comigo, guardadas, para minha recordação. Entendo perfeitamente o zelo dele.
    São crianças, são adolescentes que ainda não tem discernimento de nada e nem devem ser responsabilizados. Sob a desculpa de que o mundo está diferente hoje em dia, que as crianças perdem a malícia cedo (já ouvi muito isso e pode até ser verdade).
    O que muitas pessoas não entendem na hora de julgar é que a responsabilidade é sim do adulto. Mesmo em casos de meninas que "provoquem", o adulto tem que ser o consciente da situação. Difícil esperar isso de doentes que se excitam com crianças e com pessoas que NITIDAMENTE NÃO ESTÃO DESEJANDO aquilo? Sim, eu diria impossível.
    Então o nosso papel, mesmo que não sejamos pais ou mães é zelar por essas crianças, por esses adolescentes que nos rodeiam, que estão perto de nós. Assim como o Felipe, evitar que as desconfianças aconteçam, estar atentos quando virmos algo, denunciar, ajudar de alguma forma e se possível, prevenir.
    Você está criando um canal de conversa e um nível de confiança com sua filha que só tende a ajudar nesse processo todo. Parabéns!

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